sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Posso Confabular Com Vossa Senhoria?


Agora, inicio da noite, me veio essa lembrança. Eu era um adolescente arrogante como todos os outros nos anos 80 e gostava de andar de bicicleta e Garelli (uma mobillete), claro, nunca sozinho porque sempre tinha os amigos — na verdade, eramos 3, sempre juntos.

Como só eu tinha uma mobillete e para não andar só, sempre que ia a uma sorveteria — na praça central do bairro — chamava a rapaziada da bicicleta.

A sorveteria tinha um nome curioso, mas era uma rede (franquia) que fez muito sucesso no Rio de Janeiro — “Sorvete Sem Nome” e era de um senhor muito bacana. Na verdade, ele era um professor de física que resolver tocar o seu próprio negócio.

Algumas vezes, principalmente nos fins de semana, aparecia um mendigo pedindo trocados. Eu, sempre que tinha sobrando, dava, mas nunca sem tirar um sarro (sim, eu era um babaca), mas…

Não sei se foi a primeira lição que a vida me deu, mas com certeza — nunca esqueci.

Era inicio da noite e estava quente como hoje. Passei na casa dos amigos e partimos para tomar sorvete na badalada sorveteria do bairro.

Lá estava o velho mendigo — cabeludo, sujo e malcheiroso, como sempre.
Ele tentou falar comigo, mas fiz que não escutava, pois ele era acostumado a receber uns trocados que eu dava, era só para pedir mais uma vez.
Tinha umas meninas (gatas) bonitas e sorridentes na sorveteria e isso era bem mais interessante, né?

De repente o mendigo toca no meu ombro e diz: “posso confabular com vossa senhoria?”
Gargalhei… Quem é que esperaria um desabrigado usar de um tratamento formal/cerimonioso com um “moleque arrogante” de 16/17 anos?

Nossa, aquilo foi o suficiente para eu brincar e rir, ficar repetindo e a galerinha gargalhando.

Então me vei a lição que nunca esqueci.
O mendigo me olhou de maneira séria, porem serena e me nocauteou.

Disse, auto e claro:

“A verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafio.”
Martin Luther King Jr.

Imagina um silêncio ensurdecedor?
Os sorrisos foram se desfazendo nos rostos e um ar constrangedor desceu com um peso de morte.
Eu mareie os olhos enquanto tentava achar cara para continuar no ambiente. Porque apesar da minha arrogância de adolescente (quase adulto) sempre fui uma pessoa de muita vergonha, de bom caráter e de uma educação dura — meu pai não dava mole não.

Me refiz naquele, quase eterno, momento e foi dar atenção aquele sem-teto.
Já não importava mais os amigos… as gatinhas.
Comecei conversar com ele, como disse ELE — confabular — me contou estar sem almoçar e queria saber se poderia pagar um sanduíche para ele.
Fui me aprofundando mais e mais naquela conversa e ali se revelou — o mendigo era formado, fora professor de matemática, filosofia por anos, mas um dia sua mulher foi embora e levando as 3 filhas (deles).
O brilhante professor caiu em desgraça, abandonou a vida e resolver viver como um andarilho, já que não conseguia reencontrar as filhas e nem achar forças para retomar a vida.

Já na lanchonete, comemos enquanto surgia uma “amizade” — ele ganhou meu respeito e a minha eterna admiração.

Mas a vida é como é e nem toda historia (crônica) deixa de ser uma tragédia anunciada.


Infelizmente, tempos depois soube que o “mestre” (assim que passei a tratá-lo) pereceu, foi covardemente incendiado em quanto dormia em uma manilha abandona — as margens da avenida Brasil.






Até a próxima!

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